sexta-feira, 25 de abril de 2014

A CRIANÇA E O BEM-TE-VI



Era uma vez uma criança que criava um bem-te-vi. Mas quando os pais dela morreram, ela começou a perder o jeito com o pássaro. Desacreditava, desafiava a triste ave a cantar. A criança achou que era falta de companhia. Por três vezes tentou trazer-lhe uma companheira. Mas o bem-te-vi não dava sorte. As companheiras eram de outras espécies, não se davam bem com o bem-te-vi, não lhe entendiam o canto, a lágrima, a alma, nem mesmo o amor, quando ele se dispôs a experimentá-lo.

Embora desacreditada, a criança, ainda assim, buscava uma solução para o bem-te-vi. Soltou-lhe, ele voltou. Levou-o ao habitat natural, ele até gostou, mas não adiantou. Havia parado de cantar. E eis que o bem-te-vi passou a esperar. A tristeza lhe consumia, a saúde frágil lhe agravava o estado d’alma. Nossa criança, então, passou a esconder o bem-te-vi para que este não mais sofresse.

Enterrou-o dentro do peito, engolindo-o, quase sufocando-o. Porém, surpreendentemente, eis que o bem-te-vi ressurge de dentro do menino, formoso, divertido e falante como um papagaio. Parecia estar não apenas curado, mas renovado. Seria a salvação. Porque o bem-te-vi parou de cantar para outras aves, passou a fazê-lo apenas para si e a criança, seu dono. Foi uma tentativa de elevação do potencial de ouvir a própria canora melodia. E, por um tempo, isso funcionou. Até que as canções passaram a ser de dor, de angústia, de solidão. E por mais que amasse seu belo canto, a ave não mais conseguia trilar um som festivo. E os sons que produzia eram réquiens de sua emoção.

Aborrecida com a rebeldia do bem-te-vi, a criança decidiu estrangular a combalida ave. E com um sorriso entre os lábios, emudeceu-a para sempre. Para depois chorar, pois sabia que ao matar a voz que lhe fazia sonhar com um futuro melhor, havia selado sua própria solidão, sua própria morte. Sentada em seu quarto, diante da janela, com o cadáver do antigo companheiro ao parapeito, a criança definhou até dar o último suspiro, em forma de um gemido cantado, qual um bem-te-vi agonizante.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Máximas roderiquianas (551 a 570)

Máximas roderiquianas (551) Os erros do passado são um totem maligno e disforme que certas pessoas não deixam de nos fazer recordar. 

Máximas roderiquianas (552) O incomum atrai; o raro seduz; o estranho captura inapelavelmente.

Máximas roderiquianas (553) Lei é tudo aquilo que é perfeitamente criado para massacrar o cidadão comum, mas que possui falhas para beneficiar seus mentores.

Máximas roderiquianas (554) Um coração fustigado pela dor reconhece um gesto aproveitador, mas tende a permitir que a carência lhe conduza à aceitação.

Máximas roderiquianas (555) Antes do sexo, todos são Monalisa; durante, Guernica; logo após, Natureza Morta. Sem sexo? O Grito.

Máximas roderiquianas (556) Reminiscências repercutem, reiteram retaliações, restam retalhos, revelam recalques.

Máximas roderiquianas (557) É doloroso ver que as pessoas mais adequadas a nossa mente são as menos apropriadas ao coração... delas.

Máximas roderiquianas (558) Utopia é todo sonho que alguma pessoa ou entidade com interesses espúrios te fez acreditar ser impossível, apenas para que dele viesses a desistir.

Máximas roderiquianas (559) A gargalhada é para momentos raros, como raras são as razões para dá-la.

Máximas roderiquianas (560) A vida é um livro frustrante: escrito por um autor consagrado, porém contestado; alimentado por um enredo enfadonho e melancólico; povoado de personagens coadjuvantes e inócuos que, por desgraça, unem-se aos vilões e se dão bem ao final da história.

Máximas roderiquianas (561) Um trabalhador sem espírito de classe não honra os centavos das migalhas salariais que recebe.

Máximas roderiquianas (562) Não desprezemos os desprovidos de conhecimento. A falta de cultura tem cura; já a de caráter, essa é irreversível.

Máximas roderiquianas (563) A invisibilidade da foice do destino tem um nome: Misericórdia.

Máximas roderiquianas (564) Um homem constrói um muro de desilusão, tijolo a tijolo, por conta própria. Mas é o mundo que lhe faz reboco e pintura.

Máximas roderiquianas (565) Nenhuma dor é gratuita. Pagamos muito caro para consegui-la e ainda mais para nos livrarmos dela.

Máximas roderiquianas (566) É no silêncio de um pernoite solitário que os vermes devoram o coração do homem.

Máximas roderiquianas (567) A esperança não morre em desastres ou suicídios. Há criminosos que a vitimam, dolosa ou culposamente.

Máximas roderiquianas (568) Não há loteria que erradique a pobreza de espírito.

Máximas roderiquianas (569) As lágrimas que não escorrem pelo rosto viram pedras de sal que rolam até o coração e por lá se alojam.

Máximas roderiquianas (570) O medo do julgamento indecente dos aparentemente inocentes é o melhor promotor para os pensamentos inocentes de alguém aparentemente indecente.
               


















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Máximas roderiquianas (531 a 550)


 Máximas roderiquianas (531) Por estar próximo, e na escuridão, o brilho de um vaga-lume pode ser mais intenso que o do Sol.

Máximas roderiquianas (532) Certas curas estão em nós mesmos. E certas doenças incuráveis também.

Máximas roderiquianas (533) Muitas vezes a alma morre antes do corpo, como olhos cujas pálpebras mãos caridosas ainda não cerraram.

Máximas roderiquianas (534) Rebela-te contra o convencional e serás morto um dia; submete-te a ele e morrerás diariamente.

Máximas roderiquianas (535) Na Arte, praticamente todos os que deixaram algo significativo para este mundo morreram antes de começar a se contradizer ou se preservaram para se redimir de algo pouco aproveitável.

Máximas roderiquianas (536) Muitas vezes canários são canalhas e gralhas, graciosas

Máximas roderiquianas (537) Até que nada tenhamos feito de positivo para tentar resolver uma inimizade criada, sofre-se; depois que ocorre a rejeição da outra parte, a consciência se tranquiliza e a dor não mais existe.

Máximas roderiquianas (538) Nenhuma morte é pior que uma existência que se arrasta em dor.

Máximas roderiquianas (539) Pessoas de bem não são perfeitas: elas não suportam as maldosas sendo sempre vencedoras.

Máximas roderiquianas (540) Alguém que diz que ama a si mesmo independentemente da correspondência de outrem ou é um arrogante mentiroso ou um coitado solitário.

Máximas roderiquianas (541) Deixar-se afundar é menos angustiante que tentar emergir.

Máximas roderiquianas (542) Todo ser humano quer compartilhar sua vida e morte com um grande amor, assim como toda vela sonha em derreter em um candelabro, e não sozinha.

Máximas roderiquianas (543) O riso fugaz é uma caricatura hedionda da felicidade.

Máximas roderiquianas (544) A Arte é um grito terapêutico que nos livra dos pensamentos mais impuros.

Máximas roderiquianas (545) A injustiça humana é revoltante, mas esperada. Angustiante, realmente, é a injustiça divina. Mostra-se como a grande provação da Fé.

Máximas roderiquianas (546) A etiqueta é a sofisticação do preconceito social.

Máximas roderiquianas (547) Se Deus é absoluto e o homem relativo, não há modo de nos salvarmos. A raça humana tende a relativizar a interpretação de Sua vontade, adaptando-a para seu bem estar e modo de vida.

Máximas roderiquianas (548) Se tudo na vida tem um propósito, as mais insanas atitudes e cruéis catástrofes também o têm?

Máximas roderiquianas (549) Um homem que nunca chorou por um pretenso amor não é digno do verdadeiro quando este o encontrar.

Máximas roderiquianas (550) As pessoas rudes são capazes de brutalidades patéticas e naturais; as refinadas, das mais cruéis e cínicas vilanias, o que é ainda bem mais ultrajante.